14 abril 2017

CLÁSSICOS da 9ª ARTE: «SUPERMAN - ENTRE A FOICE E O MARTELO»




  E se, por um capricho do destino, o foguete que transportava o Último Filho de Krypton não se tivesse despenhado nos EUA mas sim no coração da URSS estalinista? Como seria o mundo sob os auspícios de um Homem de Aço arvorado a campeão do proletariado e símbolo supremo do comunismo?
  Eis as empolgantes premissas porfiadas num exercício de imaginação com o cunho de Mark Millar (Guerra Civil, O Velho Logan), e que influenciou também a abordagem de Henry Cavill ao herói em Man of Steel.

Título original: Superman: Red Son
País: EUA
Data de publicação: De junho a agosto de 2003
Categoria: Minissérie mensal em três volumes em formato americano
Licenciadora: Detective Comics (DC)
Autores: Mark Millar (trama) e Dave Johnson (ilustrações)
Protagonistas: Superman e Lex Luthor
Vilões: Brainiac
Coadjuvantes: Batman, Mulher-Maravilha, Lois Lane, Jimmy Olsen, Pyotr Roslov, Perry White, Lana Lazarenko, Amazonas de Themyscira e Tropa dos Lanternas Verdes 
Cenários: Palácio de Inverno do Superman, Themyscira, Batcaverna, Museu do Superman, Zona Fantasma, EUA, URSS e várias geografias da Terra-30 do Multiverso DC



As capas originais da minissérie
cujos créditos artísticos pertencem a Dave Johnson.
Edições em português: Como habitualmente, a primeira versão em língua portuguesa da saga ficou por conta da Panini brasileira que, em 2004, a lançou pela primeira vez em Terras Tupiniquins em formato idêntico ao original. Ainda sob o selo da mesma editora, Superman - Entre a Foice e o Martelo seria, dois anos depois, compilada num volume encadernado.
Titulada Herança Vermelha , a saga seria lançada deste lado do Atlântico em 2014 pela Levoir num volume único.

A compilação da saga
lançada em 2006 pela Panini.

Antecedentes: Segundo rezam as crónicas lavradas pelo próprio, Mark Millar seria ainda pessoa de palmo e meio na sua Escócia natal quando leu a história do Homem de Aço que, décadas depois, serviria de ponto de partida a Red Son.
Tem, portanto, a palavra o autor: «Foi um outro exercício de imaginação que li quando tinha apenas seis anos de idade que me inspirou a escrever Red Son. A história em causa fazia parte de Superman nº300 (edição comemorativa lançada em 1976) e marcou-me profundamente. Enquanto criança criada em plena Guerra Fria, não pude ficar indiferente à respetiva premissa: E se, em vez do Kansas, a nave que transportava o Último Filho de Krypton tivesse amarado em águas internacionais?
Num clima de alta tensão político-militar entre os EUA e a URSS, ambas as superpotências se apressariam a reclamar o bebé, acabando os americanos por se antecipar. Fascinava-me, no entanto, conjeturar o que teria acontecido se os soviéticos tivessem levado a melhor nessa disputa.
Sempre com esse pensamento em mente, à medida que fui crescendo continuei a reunir ideias para a minha própria narrativa. Quando tinha 13 anos, animado por aquela ousadia típica da puberdade, remeti-a à DC, na ingénua esperança de que viesse a ser publicada. Claro que, na melhor das hipóteses, o que escrevi correspondia a um rascunho. Sem mencionar que os meus desenhos eram para lá de toscos. Foi contudo esse meu projeto adolescente a lançar as bases para Red Son.
Em 1992, quando ainda residia na Grã-Bretanha e escrevia títulos como 2000 AD e Crisis para a Fleetway Publications, tinha já definido alguns dos principais eixos narrativos. Por essa altura era já ponto assente que, em vez do Kansas, o foguete que trouxe Kal-El ao nosso planeta teria aterrado numa Unidade de Produção Coletiva no coração da União Soviética governada com mão de ferro por Estaline. Quando adulto, em vez de trabalhar no Daily Planet, o Superman seria jornalista do Pravda (antigo órgão oficial do PCUS).

A fonte de inspiração para Red Son.
«Haveria também uma dramática inversão das circunstâncias geopolíticas das duas superpotências. Nesta realidade divergente, enquanto a URSS prosperava e se afirmava como farol da Humanidade, os EUA enfrentavam a decadência económica e a ameaça de desintegração representada pelos sonhos independentistas da Geórgia e da Luisiana. Uma das cenas mais impactantes mostraria tanques a esmagarem a revolta nas ruas de Nova Orleães, a exemplo do ocorrido na ex-Checoslováquia durante a Primavera de Praga.
Apesar de centrada no Superman, a história contaria com a participação de Batman, Lanterna Verde e outras figuras gradas do Universo DC. Todas elas apresentadas sob ângulos completamente distintos dos habituais. Estava ciente de que se tratava de um exercício de imaginação tão estimulante quanto arriscado. Mas eu estava disposto a assumir os riscos e, por isso, continuei a escrever.
Antes mesmo de saber se a DC me concederia foral para esta abordagem tão pouco ortodoxa à sua personagem de charneira, o meu bom e velho amigo Grant Morrison ajudou-me a definir o desfecho da trama. Uma ideia que, mesmo não sendo totalmente inovadora, apenas posso qualificar de genial (ver Trivialidades).»
A DC acabaria mesmo por dar luz verde à iniciativa, com Red Son a chegar às bancas norte-americanas em 2003. Dois anos depois, ironicamente, de Mark Millar ter apresentado a sua demissão da Editora das Lendas, onde vinha trabalhando desde 1994.
Dave Johnson, artista nascido há 51 anos em terras do Tio Sam e cujo repertório incluía à data títulos como Demon e R.E.B.E.L.S., seria o eleito para desenhar aquela que viria a ser considerada uma das melhores sagas do Homem de Aço produzidas este século e uma obra de referência na memorabilia do herói.

Mark Millar, um provocador nato
cujas fábulas não deixam ninguém indiferente..

Enredo: Em meados da década de 1950, a União Soviética surpreendo o mundo ao revelar a existência do Superman. Um alienígena com poderes semidivinos às ordens de Estaline faz soar as campainhas de alarme nos EUA, e muda o foco da corrida armamentista, em curso desde o início da Guerra Fria, das bombas atómicas para os meta-humanos.
É percetível nas entrelinhas que o despenhamento, duas décadas antes, da nave que transportava o bebé Kal-El em solo ucraniano se terá ficado a dever a um ligeiro desfasamento temporal relativamente à linha cronológica canónica.Ou seja, um par de horas de diferença na rotação da Terra colocou a nave na rota da URSS em vez dos EUA. Já a identidade dos pais adotivos do Último Filho de Krypton é um segredo de Estado muito bem guardado.
Reputado cientista dos Laboratórios S.T.A.R. e uma das mentes mais brilhantes do planeta, Lex Luthor é contratado por um agente da CIA chamado Jimmy Olsen para destruir o novo campeão soviético.
Objetivando a recolha do material genético do Superman, Luthor induz a queda do satélite Sputnik 2 em Metrópolis. Previsivelmente, o desastre é evitado graças à providencial intervenção do herói. Que, no processo, acaba também por travar conhecimento com Lois Lane, a sedutora esposa de Luthor. Apesar da tensão romântica imediatamente instalada entre o casal, ambos resistem à atração mútua devido ao estado civil de Lois.
Invocando razões de segurança nacional, o Governo estadunidense confisca o satélite soviético e Luthor utiliza os vestígios biológicos nele deixados por Superman para fabricar um clone do herói. Algo falha no processo e a duplicata, oficialmente denominada Superman 2, exibe várias deformidades físicas que lhe conferem uma aparência bizarra.

Superman, o campeão do proletariado.
Entretanto, Superman e Mulher-Maravilha, a embaixadora de Themyscira, são apresentados numa festa diplomática. Seduzida pelo garbo e pela nobreza de caráter do Homem de Aço, a Princesa Amazona insinua-se, mas o herói é forçado a abandonar apressadamente o evento após avistar o tenebroso Pyotr Roslov, diretor da não menos tenebrosa NKVD (polícia política antecessora da KGB) e filho ilegítimo de Estaline.
Ressentido com a afeição dispensada pelo pai a um extraterrestre, Pyotr considera que o advento do Superman reconfigurou a estrutura de poder do regime soviético, hipotecando as suas hipóteses de vir a ser o herdeiro designado de Estaline à frente dos destinos daquela que é uma das duas nações mais poderosas do mundo.
A despeito disso, Pyotr executa pessoalmente um casal de dissidentes que vinham imprimindo e distribuindo panfletos alertando para a potencial ameaça representada pelo Superman. Crime cometido à frente do filho do casal, assim traçando o destino do menino.
Cada vez mais perturbado, Pyotr ordena em segredo o envenenamento do pai com cianeto. Decisão de que se arrepende mas não ao ponto de confessar a autoria moral da conjura que levou à morte de Estaline. Com o povo soviético enlutado e tomado por um sentimento de orfandade, o Superman é convidado pelo Politburo a assumir a liderança do Partido, mas não cede ao apelo do poder.

A relação próxima de Estaline com Superman não agradava a todos.
Semanas depois, a mando de Luthor, o Superman 2 ataca o Homem de Aço. Sem que dele emirja um vencedor inequívoco, o titânico confronto provoca o lançamento acidental de um míssil nuclear sobre o Reino Unido.
Infundido do mesmo heroísmo do original, o Superman 2 imola-se na tentativa de impedir o holocausto no qual pereceriam milhões. Londres acaba, porém, por ser atingida pelas devastadoras ondas de choque da detonação, daí resultando um elevado número de vítimas mortais entre os seus habitantes. Paralelamente a todas as outras repercussões, o incidente tem também como consequência o rompimento das relações diplomáticas entre o Reino Unido e os EUA.
Inconformado com o fracasso do seu projeto, Luthor resolve abandonar os Laboratórios S.T.A.R. e fundar a sua própria empresa, a LuthorCorp. Não sem antes assassinar a sangue frio todos os seus ex-colaboradores.
Negligenciada pelo marido, Lois Lane fantasia com o Superman que, por sua vez, também não a consegue expulsar do pensamento. Tudo muda no entanto quando se propicia o reencontro do herói com Lana Lazarenko, o seu amor de infância.
Ao observar o sofrimento de Lana e dos seus filhos, o Superman conhece pela primeira vez o reverso do paraíso socialista apregoado pela bem oleada máquina propagandística do regime. Circunstância que o leva a reconsiderar a sua decisão de rejeitar a liderança do PCUS, por entender ser seu dever moral fazer uso dos seus poderes para transformar não só a URSS mas o mundo inteiro numa utopia.

Superman toma finalmente consciência
das misérias do regime que simboliza.
Quatro décadas depois, em 1978, o panorama mundial é deveras diferente daquele que todos conhecemos. Com John F. Kennedy na Casa Branca após suceder a Richard Nixon (assassinado em Dallas 15 anos antes), os EUA estão no limiar do colapso social. Cenário contrastante com o da URSS que, graças à liderança do Superman, vive uma era de inaudita prosperidade económica e vem alargando o seu arco de influência a praticamente todo o globo. De facto, salvo os EUA, apenas o Chile se mantém à margem da utopia socialista fundada pelo Homem de Aço.
No entanto, nem tudo é tão idílico como aparenta. A paz e a prosperidade tiveram como custo a severa restrição das liberdades individuais. Com o Superman transformado num tirano benevolente, os dissidentes são submetidos a lobotomias que os convertem em autómatos obedientes. Embora governe agora a URSS em conjunto com a Mulher-Maravilha, o herói não a trata como sua consorte e ignora o amor que ela lhe devota.
Enquanto o impulso secessionista de vários estados empurram os EUA para a implosão, Luthor, mais obcecado do que nunca em destruir o Superman, planeia encolher Moscovo. O plano acaba, contudo, por fracassar depois de Brainiac, o seu novo aliado, encolher por engano Estalinegrado. Os dois acabam detidos pelo Superman que, malgrado os seus esforços, é incapaz de reverter o processo de miniaturização de uma das principais cidades soviéticas. Esse seu primeiro revés deixo-o consumido pela culpa. Para aliviá-la, decide engarrafar Estalinegrado para melhor a preservar e para lhe servir de lembrete da sua falibilidade.

Estalinegrado, uma cidade engarrafada.
Recusando-se a atirar a toalha ao chão, Luthor engendra novo plano de destruição do seu némesis. Um que envolve Batman, sob cujo capuz se esconde o órfão que, em criança, viu os seus pais serem assassinados por Pyotr Roslov. E é precisamente com o auxílio deste, agora chefe supremo da KGB, que Batman sequestra a Mulher-Maravilha com o intuito de usá-la como engodo para atrair o Superman para uma armadilha com raios que imitam o sol vermelho do seu planeta natal. Em teoria, isso deixá-lo-ia privado dos seus poderes.
O plano resulta na perfeição, deixando o Superman em agonia. Ele consegue no entanto persuadir a Mulher-Maravilha a libertar-se do laço que a prendia e a destruir as lâmpadas de sol vermelho. Restabelecido, o Superman parte rapidamente no encalço dos seus algozes, indiferente aos profundos ferimentos da sua companheira, infligidos quando ela se esforçava para lhe salvar a vida.
Uma vez capturado pelo Superman, Pyotr Roslov é transformado num dos seus robôs. Temendo sofrer idêntico destino, Batman opta pelo suicídio, assim fornecendo um mártir à causa Anti-Superman. Luthor, por seu lado, coloca em marcha novo plano após a descoberta de uma misteriosa lanterna verde entre os destroços de uma nave espacial acidentada em Roswell, Novo México.
Heróis da Terra-30.
Reprogramado pelo Superman, Brainiac torna-se seu lacaio e é incumbido da construção do seu Palácio de Inverno na Sibéria. Apesar de determinado a vencer o braço de ferro com os EUA, o Homem de Aço vai rejeitando as sugestões feitas por Brainiac para que invada o país inimigo.
Pouco tempo depois, Lex Luthor e Jimmy Olsen são eleitos, respetivamente, Presidente e Vice-Presidente dos EUA. Fazendo uso do seu conhecimento científico, de vasto capital económico e dos seus poderes autocráticos, o novo líder norte-americano honra a sua promessa de restituir a grandeza à nação que vê nele um messias.

Luthor, um presidente aclamado pelo povo.
Tudo isso faz no entanto parte de um plano mais abrangente, que visa instigar o Superman a invadir os EUA. E quando isso acontecer, Luthor conta com duas armas secretas: a Tropa dos Lanternas Verdes e a Zona Fantasma (local fora do alcance da superaudição do Homem de Aço que, acredita-se, a usa para ouvir cada palavra pronunciada no mundo).
Demora pouco a Luthor passar da teoria à prática, confrontando o Superman no seu Palácio de Inverno. Acaba no entanto capturado por Brainiac, que aproveita o ensejo para voltar a instigar o Homem de Aço a invadir os EUA. Obtendo desta feita uma resposta positiva da parte do seu amo.
Com a Costa Leste dos EUA sob ataque do Superman, a Primeira Dama, Lois Lane, viaja até Themyscira, agora governada por uma amarga Mulher-Maravilha, na expectativa de forjar uma aliança com as Amazonas.
Entretanto, a Tropa dos Lanternas Verdes, comandada pelo coronel Hal Jordan, é facilmente desbaratada pelo Superman. Caída a primeira linha defensiva dos EUA, cabe de seguida às Amazonas e à equipa de supervilões reunida secretamente ao longo dos anos por Luthor procurar suster o avanço do Homem de Aço. Mas todos eles acabam igualmente derrotados.
Num ataque coordenado com o do Superman, na Costa Oeste a gigantesca nave espacial de Brainiac pulveriza a frota naval do Pacífico antes de os dois superseres convergirem para a Casa Branca, onde Luthor os saúda com a sua derradeira arma secreta: uma simples nota manuscrita onde se pode ler "Porque não pões simplesmente o mundo inteiro numa garrafa, Superman?".
Magoado pela alusão ao ocorrido com Estalinegrado, o Superman percebe ter ido longe de mais e ordena a Brainiac o cessar das hostilidades. Este, no entanto, nunca estivera realmente sob seu domínio e ataca-o com kryptonita.

A traição de Brainiac.
Desligado remotamente por Luthor, Brainiac cai por terra, deixando desgovernada a sua nave que ameaça colapsar sobre Washington, D.C.
Reunindo as energias que ainda lhe restam, o Superman alça voo e empurra a nave de Brainiac para o espaço, onde ela explode em mil pedaços. Num ato de justiça poética, o mundo é salvo pelo  sacrifício supremo do seu opressor.
Nos meses seguintes ao desaparecimento do seu líder e campeão, a URSS mergulha na anarquia, mas a ordem é rapidamente restabelecida graças à ação dos Batmen (antigos membros da Resistência que adotaram o símbolo do morcego após a morte do Batman).
Luthor incorpora vários dos conceitos de Superman e Brainiac na sua nova doutrina - o Luthorismo - que serve de base à fundação dos Estados Unidos Globais. Sendo esse um momento definidor na História da Humanidade. Graças aos progressos científicos proporcionados por essa era de paz e prosperidade sem precedentes, são encontradas as curas para todas as doenças conhecidas. É também iniciada a colonização do sistema solar sob a égide do Governo Global presidido por Luthor, cuja vida se prolonga por mais de um século.
Quando Luthor morre por fim, o Superman comparece às suas exéquias usando um disfarce em tudo semelhante ao de Clark Kent. Identidade que, recorde-se, ele nunca assumiu nesta dimensão paralela. Ao avistar aquela misteriosa figura entre a multidão, Lois Lane, a viúva de Luthor, tem uma estranha sensação de déjà vu mas não suspeita do que quer que seja.
Afastando-se discretamente, o Superman, cuja imortalidade fica implícita, planeia viver doravante entre os humanos em vez de governá-los.
Milhões de anos no futuro, a Terra está a ser destroçada por violentos maremotos causados pelo Sol, agora transformado num gigante vermelho. Jor-L, um longínquo descendente de Luthor, envia o seu filho recém-nascido, Kal-L, numa viagem para o passado com a missão de prevenir a iminente extinção da Humanidade.
Os painéis finais da história mostram a nave que transporta o bebé a aterrar numa quinta coletiva algures na Ucrânia em 1938 (ano da estreia oficial do Superman na BD), causando dessa forma um paradoxo de predestinação. Consistindo o mesmo em o Homem de Aço ser um descendente de Luthor.

Um mundo virado do avesso.

Apontamentos:

*A propaganda soviética acerca do Superman reproduz, ipsis verbis, o genérico de introdução de The Adventures of Superman. O primeiro folhetim radiofónico baseado no herói, emitido em diferentes formatos no período compreendido entre 1940 e 1951, apresentava-o como "um estranho visitante de outro mundo capaz de mudar o curso de rios e de dobrar barras de aço com as próprias mãos";
*Ao entrar em cena pela primeira vez, Lex Luthor surge entretido com a montagem de um quebra-cabeças da Acme Corporation. Trata-se da empresa fictícia cuja parafernália de acessórios é utilizada nos desenhos animados da Looney Tunes. Que, tal como a DC, é propriedade da Warner Bros;
*O painel do primeiro tomo da saga onde o Superman devolve um balão a um menino americano enquanto segura com a outra mão o globo do Daily Planet rende homenagem à icónica capa de Superman nº1 (1939);


A homenagem feita a Superman nº1 (em cima).
*A miniaturização de Estalinegrado é uma referência à Cidade Engarrafada de Kandor, elemento recorrente nas história do Homem de Aço durante a chamada Idade de Prata dos quadradinhos;
*Entre os vários itens em exposição no Museu do Superman avultam as estátuas dos seus pais biológicos, cuja estética corresponde a uma mescla daquelas que tradicionalmente os representavam na Fortaleza da Solidão com o célebre monumento Operário e Camponesa, esculpido por Vera Mukhina em 1937 para a participação soviética na Exibição de Artes, Ofícios e Ciências patente em Paris nesse mesmo ano. Outra das relíquias a integrar o referido acervo museológico é o  lendário Supermobile. Veículo construído pelo herói numa história datada de 1978 em que ele ficara temporariamente privado dos seus superpoderes, em consequência da explosão de um sol vermelho;

O Supermobile em ação contra Amazo.
*Oliver Queen (persona civil do Arqueiro Verde no universo canónico da DC) e Iris West (interesse amoroso do Flash Barry Allen no mesmo contexto) surgem retratados na história como funcionários do Daily Planet. O próprio Barry Allen é também referenciado por Iris como tendo chegado com duas horas de atraso à festa de despedida de Perry White, o agora aposentado editor do tabloide;
*Identificada como Devilpig, a estátua exposta na Batcaverna foi batizada com o pseudónimo com que o ilustrador Dave Johnson gosta por vezes de assinar as suas obras;
*A arquitetura do Palácio de Inverno do Superman é baseada na da sua Fortaleza da Solidão da Idade da Prata. O acesso às duas estruturas só era possível com recurso a uma gigantesca chave metálica que pesava várias toneladas. No interior do Palácio de Inverno, além dos destroços do Titanic, encontram-se expostas as estátuas de Darkseid e Krypto (o Super-cão), bem como a nave kryptoniana que trouxe Kal-El à Terra;
*No momento em que, no terceiro e último capítulo da história, o Homem de Aço discute com Brainiac a situação política dos EUA, uma cena em fundo mostra um grupo de manifestantes a tombarem um automóvel e um homem a fugir do caos instalado. Trata-se de uma homenagem à capa de Action Comics nº1, a histórica edição que, em junho de 1938, apresentou o Superman ao mundo;
*Pese embora a Ucrânia surja referenciada numa legenda como sendo parte integrante da Rússia em 1938, isso não corresponde à verdade. Antes da formação da União Soviética, em 1922, ambas eram nações independentes e, depois dessa data, adquiriram o estatuto de repúblicas constituintes da nova entidade geopolítica. Trata-se, portanto, de uma gafe histórica do autor;
*Informalmente creditado ao escritor britânico Grant Morrison, o final da saga contém alguns conceitos imaginados por Jerry Siegel em 1934 para explicar a origem do Superman. Nesse primeiro rascunho da história do herói, ele seria oriundo do futuro e teria sido enviado para o passado pelo seu pai, o último homem da Terra, com a missão de prevenir a extinção da Humanidade;
*Henry Cavill citou Red Son como uma das quatro obras capitais do Superman que influenciaram a sua interpretação em Man of Steel (2013);
*O visual e missões do Superman, Mulher-Maravilha e Batman no jogo de vídeo Injustice: Gods Among Us são baseados nas suas contrapartes de Red Son;

Henry Cavill em Man of Steel: um herói marxista?

Vale a pena ler?

Isso lá é coisa que se pergunte? É como perguntar a um cego se ele quer ver ou a um paralítico se ele gostaria de voltar a andar. Esta é, sem sombra de dúvida, uma das melhores histórias do Superman dadas à estampa este século. Fadada a ser um clássico e, por conseguinte, a ocupar lugar de destaque na memorabilia do herói.
Acham que estou a exagerar? Leiam até ao fim a minha análise e retirem as vossas próprias conclusões. Lembrem-se,  no entanto, que, ao cabo de quase 80 anos de aventuras e desventuras do Homem de Aço, não é fácil uma história sua surpreender-nos ao ponto que esta o faz.
Nunca fiz segredo do meu fascínio por dimensões paralelas e realidades alternativas. Quem não perde pitada do que por aqui vou publicando sabe bem quanto aprecio esses estimulantes exercícios de imaginação em que os nossos heróis de sempre são transpostos para contextos diferentes dos habituais. Poucos escritores da atualidade exibem, no entanto, tanta mestria na exploração dessas premissas inovadoras como Mark Millar.
Mesmo os que lhe regateiam elogios terão de reconhecer que lhe sobeja coragem para fazer abordagens arrojadas (e, não raro, polémicas) a personagens consagradas. Circunstância que consolida o seu estatuto de fabulista dos tempos modernos, com uma costela subversiva.
Da pena de Millar vêm saindo sagas memoráveis, algumas das quais já adaptadas ao cinema. Casos, por exemplo, de Guerra Civil e O Velho Logan (ambas da Marvel, ambas já aqui esmiuçadas). Mas antes delas Millar assinou este magistral épico onde o Superman é apresentado como nunca antes o tínhamos visto.

Uma nova ordem mundial sob a égide do Superman.
Todas as culturas dispõem de uma iconografia própria. Personagens e figuras reconhecíveis por qualquer indivíduo que delas faça parte. Ou até mesmo por quem lhes é estranho. Em qualquer dos casos, esses ícones, quais monstros sagrados, tendem a ser reverenciados e, portanto, são frequentemente vistos como intocáveis.
Poucas culturas conseguirão todavia globalizar as suas iconografias como a norte-americana. Lembro-me de ter lido algures que a principal exportação dos EUA são os sonhos. Começando, obviamente, pelo tão incensado sonho americano que, apesar de já ter conhecido melhores dias, nem por isso deixou de ser menos apetecível.
Nenhuma outra personagem melhor o metaforiza do que o Superman. Afinal, estamos a falar de um refugiado vindo das estrelas que encontrou guarida em terras do Tio Sam, tornando-se, a par dele, um dos símbolos maiores dos EUA.
No fundo, o Superman representa o que os EUA deveriam ser enquanto nação: poderosa, mas justa e compassiva. Mesmo dispondo dos meios para controlar o mundo, o herói escolhe não o fazer. E todos gostamos de acreditar que isso se deve ao facto de ele ter sido criado por um bondoso casal do Kansas, que o dotou de uma fibra moral tão forte como o metal que o cognomina.
Partindo desse pressuposto, Millar examina em Red Son como as coisas poderiam ter sido muito diferentes se a trajetória do herói tivesse sido outra.
Sem subverter o mito, a história coloca-o em perspetiva. De salvador, o Superman passa a tirano bem-intencionado. Com Luthor a assumir-se como libertador da Humanidade. Uma fascinante inversão de papéis que leva o leitor a questionar quem será afinal o verdadeiro vilão. Ou se haverá sequer um (exceto por Brainiac, que não sabe ser outra coisa).
Evocando a estética da antiga propaganda soviética, a arte de Dave Johnson dá um toque especial à trama, na qual todo um conjunto de personagens são devidamente trabalhadas. Mais importante do que tudo isso é, porém, a mensagem que ela encerra. E não me refiro apenas ao subtexto político suscetível de ser interpretado de múltiplas formas consoante a ideologia perfilhada pelo leitor. Se um conservador poderá ver na história uma alegoria para os perigos da estatização da sociedade, aos olhos de um liberal ela poderá ser um manifesto anti-imperialismo.
A essas leituras ideologicamente engajadas sobrepõe-se uma mensagem que lhes é transversal: a de que os indivíduos e as sociedades são definidos pelas escolhas que fazem. Podem nem sempre ser as mais acertadas, mas o importante é que sejam livres. Porque, à falta de um salvador semidivino na vida real,teremos de salvar-nos a (e de) nós próprios. É essa a grande lição de moral a retirar de Red Son.

Símbolo de esperança ou de opressão?