07 setembro 2016

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «A PIADA MORTAL»



   Um dia mau será tudo o que separa uma pessoa normal do abismo da loucura? Serão Batman e Joker as duas faces da mesma moeda, reflexos distorcidos um do outro? Questões perturbadoras a que Alan Moore procurou dar resposta naquela que muitos consideram ser a origem definitiva do Palhaço do Crime. Obra tão genial e controversa quanto o seu autor, e cujos ecos reverberam até hoje.

Título original: Batman: The Killing Joke
Data: Maio de 1988
Licenciador: Detective Comics (DC)
Autores: Alan Moore (trama) e Brian Bolland (ilustrações)
Protagonistas: Batman, Joker, Comissário Gordon e Barbara Gordon
Coadjuvantes: Alfred Pennyworth e Harvey Bullock
Cenários: Vários pontos de Gotham City, incluindo o Asilo Arkham, a Batcaverna e a Mansão Wayne

Edições em português: No período compreendido entre 1988 e 2015, foram 7 as publicações e republicações de A Piada Mortal lançadas no Brasil sob a égide de 3 editoras distintas. A saber: Abril, Opera Graphica e Panini (por esta ordem cronológica). Sobressaindo dentre esses volumes aquele que foi dado à estampa pela Opera Graphica em fevereiro de 2005. Além do formato livro de bolso, o cariz ímpar desse álbum de luxo com capa dura advém igualmente da circunstância de ser o único a preto e branco.
Importa ainda observar, no que às republicações a cargo da Panini diz respeito, que uma delas, datada de outubro de 2006, foi inclusa numa antologia de histórias clássicas da DC saídas da pena de Alan Moore.
A 1ª edição em português de A Piada Mortal
 em Graphic Novel nº5 (1988), cuja capa reproduzia a original.
A singular reedição da história lançada em 2005 pela Opera Grapica.
A coletânea da Panini onde foi inclusa
 uma das reedições de A Piada Mortal.
Desenvolvimento e alcance: Vagamente inspirada em The Man Behind the Red Hood (historieta clássica do Batman originalmente publicada em 1951), A Piada Mortal verte uma nova luz sobre o obscuro passado do Joker. Personagem cuja natureza trágica é, pela primeira vez, colocada em evidência, ao ser retratado como um simples homem de família que, devido a um rosário de dramas e más decisões, embarca numa viagem sem retorno pelas veredas da insanidade.
À semelhança da supracitada história da Idade do Ouro, A Piada Mortal sugere que antes de se tornar no inimigo figadal do Batman, o Joker (cujo verdadeiro nome em momento algum é revelado), teria sido um reles gatuno fantasiado que se apresentou ao mundo como Capuz Vermelho.
Uma vez metamorfoseado no aterrador Palhaço do Crime, são habilmente exploradas as suas semelhanças e contrastes com o estoico Cavaleiro das Trevas. Perspetivados como a antítese perfeita um do outro, lê-se nas entrelinhas que os dois estarão predestinados à coexistência, porquanto a razão de ser de cada um deles se justifica apenas em função da do outro.
Psicodrama por excelência, A Piada Mortal tem na lógica pervertida do Joker o seu fio condutor. Para ratificar o seu postulado de que basta uma conjuntura particularmente adversa para fazer qualquer pessoa normal despencar no abismo da loucura, o vilão não olha a meios. Agindo por isso com os requintes de extrema malvadez que o definem desde a ponta final da Idade do Bronze dos Quadradinhos (1970-1985).

 Detective Comics nº168 (1951) trouxe
 a história matricial de A Piada Mortal.
Mas como é que tudo começou? De quem partiu a ideia de produzir uma história desta natureza? Previam os seus autores o impacto que ela teria? O que a tornou tão polémica? Questões pertinentes a que procurarei dar resposta ao longo da presente resenha. Vamos, então, por partes.
Quando, em meados de 1984, endereçou um convite aos britânicos Alan Moore* (Watchmen) e Brian Bolland (Camelot 3000) para recontarem a origem do Joker, Dick Giordano, à data editor-chefe da DC, estava longe de imaginar quão moroso e impactante esse projeto seria.
Ambos conhecidos pela meticulosidade do respetivo trabalho, a aquiescência de Moore e Bolland só foi conseguida em troca da total ausência de prazos. Sendo pois essa a justificativa para os quase quatro anos que a obra demorou a ser produzida, sob a supervisão de três editores diferentes: a Dick Giordano sucederia Len Wein e a este Dennis O'Neil. Com o qual Bolland se recorda de ter tido apenas uma curta conversa sobre o trabalho em curso. Motivada, segundo ele, pelo seu desagrado em relação à colorização das sequências em flashback. Que, em vez das tonalidades sóbrias requeridas pelo artista, contavam com uma palete de cores garridas. Situação que só seria retificada pelo próprio Bolland em 2008, na reedição que assinalou o 20ª aniversário d' A Piada Mortal.
Bolland reivindica ainda como sua a ideia da trama ser focada no Joker, relegando o Batman para plano secundário. Desse modo arvorado num narrador inconfiável, o vilão diverte-se com a sinuosa evocação do seu passado. De tão labiríntico que é o seu relato, é impossível comprovar a sua autenticidade. Restando, portanto, ao leitor escolher, dentre as múltiplas opções servidas pelo Palhaço do Crime, aquela que se lhe prefigura menos implausível ou, pura simplesmente, aquela que mais o fascina.
Um dos principais méritos que fizeram d'A Piada Mortal uma obra de charneira na memorabilia da DC consistiu na drástica alteração da perceção do público em relação às histórias do Batman. Cuja essência taciturna, suprimida ao longo de quase toda a Idade da Prata, tinha vindo progressivamente a ser restaurada a expensas de projetos como The Dark Knight Returns (1986) e Batman: Year One (1987). A exemplo destas, também na fábula de Moore o Homem-Morcego surge retratado como um indivíduo tão ou mais perturbado do que o próprio Joker. Facto que robusteceu a noção de simetria das duas personagens e as devolveu às suas raízes.
Não obstante, os seus autores sublinharam sempre que A Piada Mortal constituiu tão-somente uma proposta para a origem do Palhaço do Crime. O que não impediu que a narrativa fosse quase unanimemente considerada como a sua versão decantada e definitiva. A prová-lo, o facto de a generalidade dos elementos nela presentes terem sido incorporados na continuidade oficial da Editora das Lendas, passando a coexistir com os cânones da personagem estabelecidos desde a Idade da Prata.

Brian Bolland (esq,) e Alan Moore foram os artífices
 de uma das melhores histórias do Batman de todos os tempos.
Devolvendo a palavra aos autores, Brian Bolland assumiu que a sua visão do Joker foi parcialmente influenciada pelo seu recente visionamento de The Man Who Laughs (filme mudo de 1928 cujo tétrico coprotagonista terá servido de matriz à criação do Palhaço do Crime). Vilão clássico das histórias de Judge Dredd, Judge Death foi outra das referências usadas pelo artista para definir a estética do eterno némesis do Homem-Morcego numa história psicologicamente intrincada que só poderia ter saído da imaginação retorcida de Alan Moore.
Este, no entanto, em diversas ocasiões desvalorizou a importância da obra. Parecendo mesmo não desperdiçar um ensejo para depreciá-la. Numa entrevista concedida em 2000, o polémico escritor inglês surpreendeu meio mundo ao dizer: "Não acho que seja uma grande história, já que não diz nada de particularmente interessante. Não me orgulho dela, tampouco a considero um dos meus melhores trabalhos."
Decorridos três anos, em nova entrevista, Moore foi ainda mais longe: "A Piada Mortal é um exercício de ficção envolvendo o Batman e o Joker, duas propriedades intelectuais da DC. Não trata de nada com que algum de nós se possa confrontar na vida real, porque nenhum deles pode sequer ser comparado com qualquer pessoa de carne e osso. Além de canhestra, a narrativa é completamente despojada de valor humanista. E foi claramente mal interpretada pelos leitores e pela crítica." 
Mal interpretada ou não, certo é que a história, salvo raríssimas exceções, deixou os críticos enlevados. Enlevo esse que fez correr rios de tinta nos meses imediatos à sua publicação.Com a consagração definitiva a chegar em 1989 sob a forma de dois Eisner Awards (equivalente bedéfilo aos Óscares cinematográficos) nas categorias de melhor álbum e de melhor escritor.
Nada mau para uma obra literária que ainda hoje suscita acesos debates e quase abjurada pelo próprio autor. Mas cuja influência, volvidos quase trinta anos, se continua a fazer sentir de forma inequívoca no Universo DC e na história da 9ª Arte.

* Perfil disponível em http://bdmarveldc.blogspot.pt/2013/04/eternos-alan-moore-1953.html

Desenhada pelo brasileiro Rafael Albuquerque,
esta capa de Batgirl fez implodir a internet pouco tempo atrás.
Saibam porquê no texto abaixo.
Controvérsia feminista: Devido às sevícias físicas de que Barbara Gordon é vítima nela, A Piada Mortal tem estado na mira do movimento feminista, que acusa Alan Moore de misoginia e de fazer a apologia descarada da violência contra as mulheres. Opinião, de resto, partilhada por um significativo número de leitores escandalizados pelos requintes de sadismo presentes na sequência em que a filha do Comissário Gordon é estropiada (e presumivelmente violada) pelo Palhaço do Crime.
Algumas das críticas mais abrasivas partiram mesmo de colegas de profissão de Alan Moore. Foi o caso, por exemplo, de Gail Simone (escritora notabilizada sobretudo pelo seu trabalho com a Mulher-Maravilha e a Batgirl), que denunciou a crueldade extrema de que recorrentemente são alvo as personagens femininas na banda desenhada. Aquilo que ela designa como a Síndrome das Mulheres no Frigorífico, numa alusão a uma história homónima do Lanterna Verde Kyle Rainer datada de 1994, na qual o herói descobre o corpo mutilado da namorada no interior de um frigorífico.

Gail Simone, uma das vozes mais críticas da crueldade
 a que são sujeitas muitas personagens femininas nos comics.
Análise secundada pelo historiador da 9ª Arte Jeffrey A. Brown, segundo o qual o nível de violência a que são expostas as personagens femininas nos comics é incomparavelmente superior àquele que é reservado às suas contrapartes masculinas. Mesmo quando severamente mutiladas ou mortas, estas têm maiores probabilidades de lhes ser restituído o seu estado original do que as primeiras. Sendo paradigmático - ainda seguindo a linha de raciocínio de Brown - o caso de Barbara Gordon. Cuja paralisia causada pelo disparo à queima-roupa do Joker se manteve irreversível ao longo de quase um quarto de século (na realidade de Os Novos 52, Barbara Gordon recuperou enfim a sua mobilidade).
Exasperado com a celeuma em redor da sua obra, Alan Moore apenas numa ocasião se pronunciou sobre ela. Igual a si próprio, em 2006 o escritor britânico foi incisivo na sua resposta dada durante uma entrevista à revista Wizard: "Lembro-me de ter perguntado ao nosso editor da altura, Len Wein, se podia aleijar a Barbara Gordon. Apesar de ela ser a Batigrl, ele não teve problemas com isso. Talvez alguém devesse ter-me impedido de fazê-lo, mas ninguém o  fez. E eu não tenho por hábito chorar sobre o leite derramado." 
Reavivada por estas pouco diplomáticas declarações de Moore, a controvérsia conheceria novo capítulo no início de 2015. Tudo por causa de uma polémica capa alternativa da revista Batgirl desenhada pelo brasileiro Rafael Albuquerque. Na qual não faltou quem divisasse uma tentativa de conferir glamour à violência sexual exercida sobre as mulheres. De nada adiantando à DC vir a terreiro esclarecer que a imagem pretendia apenas render um singelo tributo à Piada Mortal.
Com o debate ao rubro no ciberespaço, Rafael Albuquerque recebeu várias ameaças de morte através das redes sociais. A fim de serenar os ânimos, o artista recorreu à sua conta no Twitter para apresentar um pedido de desculpas, já depois de ter solicitado à editora a retirada de circulação da capa que tanto brado provocou.
Ficando desse modo patente a fortíssima carga emocional acomodada numa história imune à passagem do tempo, mas não das mentalidades. A verdade é que, nos dias que correm, A Piada Mortal dificilmente passaria no crivo do politicamente correto, essa espécie de versão moderna dos tribunais do Santo Ofício a cujos arbitrários julgamentos nada nem ninguém parece escapar.
Foi assim que Barbara Gordon acabou numa cadeira de rodas.

Enredo: Pela calada da noite, Batman visita o Joker na sua cela no Asilo Arkham. Enquanto observa o seu arqui-inimigo a jogar tranquilamente às cartas sozinho, o Cavaleiro das Trevas diz-lhe que a incessante loucura na vida de ambos tem de parar, sob pena de um deles acabar por morrer às mãos do outro.
Imperturbável, o Palhaço do Crime continua a deitar as cartas na mesa até ser violentamente puxado por um enfurecido Homem-Morcego. Que nesse instante se apercebe estar em presença de um impostor. Não é o Joker que o herói tem diante de si, mas apenas um homem vestido e maquilhado como ele.
Longe dali, o verdadeiro Palhaço do Crime estás prestes a fechar negócio com o proprietário de um parque de diversões abandonado.  Depois de uma visita guiada ao espaço, o Joker mata o pobre diabo e dá por concluído o processo de aquisição. Em seguida, embrenhado em pensamentos, o vilão começa a recordar algumas passagens da sua vida anterior.
Nessa revisitação, o homem que viria a ser o Joker era um engenheiro anónimo que, para tentar a sua sorte como comediante, largou o  emprego numa fábrica de químicos. Os planos, no entanto. saíram-lhe furados. Desesperado por sustentar a esposa grávida, concordou em participar num assalto às instalações da fábrica onde trabalhara.
Durante a reunião em que ele participava numa esconsa taberna com os dois criminosos que o haviam recrutado para o assalto, a Polícia notificou-o da morte da sua esposa. Ao que tudo indica, em consequência de um acidente doméstico envolvendo um aquecedor elétrico de biberões. Transtornado, o homem procurou desistir do plano mas foi coagido pelos seus cúmplices a cumprir o acordado.
Na fábrica, os dois malfeitores obrigaram o antigo engenheiro a usar um capacete opaco de cor encarnada, transformando-o assim no Capuz Vermelho. Na verdade, tratava-se de um subterfúgio para o incriminar como sendo o chefe da quadrilha caso fossem apanhados pela Polícia.
Mal adentrou nas instalações, o trio de assaltantes esbarrou com os seguranças que as vigiavam. Seguindo-se uma violenta troca de tiros e uma desenfreada perseguição pelos corredores e plataformas da fábrica.
Já depois de os seus cúmplices terem sido abatidos pelos guardas, o Capuz Vermelho viu-se encurralado pelo Batman que acorrera ao local para averiguar o que se passava.
Em pânico, o Capuz Vermelho saltou para dentro de uma enorme tina contendo resíduos tóxicos, nadando de seguida através de uma conduta até ao exterior da fábrica. Ao remover o capacete, descobriu, horrorizado, que os ingredientes químicos em que ficara submerso lhe tinham alterado permanentemente a pigmentação da pele, lábios e cabelo. Agora transformado num sinistro palhaço, o homem sucumbiu à insanidade e nessa noite malsinada nasceu o Joker.

A noite em que o Joker nasceu para atormentar o mundo.
Quanto de verdade terá o seu relato?
De volta ao presente, alguém bate à porta do apartamento de Barbara Gordon quando ela está acompanhada do pai. Ao abri-la, a jovem dá de caras com o Joker vestido como um turista e com um revólver apontado na sua direção. Sem lhe dar tempo de reagir, o Palhaço do Crime prime o gatilho, atingindo Barbara à queima-roupa no baixo ventre.
Enquanto a filha jaz ensanguentada no chão, o Comissário James Gordon é agredido e subjugado pelos capangas do Joker. Que, indiferente ao que se passa à sua volta, começa a despir Barbara ao mesmo tempo que a vai fotografando.
Horas depois, Barbara é transportada para o hospital, e um médico informa o detetive Harvey Bullock de que a lesão causada pelo projétil na coluna vertebral da jovem a deixará paraplégica para o resto da vida.
Nessa mesma noite, a rapariga recebe a visita do Batman, a quem implora que salve o pai do que quer que o Joker tenha planeado fazer-lhe.
No parque de diversões agora ocupado pela trupe do Palhaço do Crime, o Comissário Gordon é desnudado e aprisionado numa jaula por um grupo de anões deformados. Acorrentado e enfiado à força num carrossel, o chefe do Departamento de Polícia de Gotham City (DPGC) é obrigado a assistir repetidas vezes a um aterrador caleidoscópio de imagens da sua filha ferida e em trajes menores.
Quando a alucinante viagem termina finalmente, o Joker ridiculariza Gordon, apontando-o como exemplo do homem comum que se julga imune à loucura, mas a quem bastará um dia mau para perder irreparavelmente a razão.

Para provar o seu ponto de vista,
o Joker testa os limites do Comissário Gordon.
Enquanto isso, Batman esquadrinha a cidade à procura de pistas que o ajudem a descobrir o paradeiro do Joker e do Comissário Gordon. Ao avistar o Bat-sinal projetado no céu noturno, o herói dirige-se ao telhado da sede do DPGC onde é esperado pelo detetive Bullock. Este entrega-lhe dois bilhetes para o parque de diversões abandonado, que lhe haviam sido enviados anonimamente.
Quando o Cavaleiro das Trevas chega ao recinto que serve de covil ao Joker, este consegue escapulir-se para a casa dos espelhos. Salvo pelo herói, o Comissário Gordon mantém intacta a sua sanidade mental, apesar do suplício a que foi sujeito. Tanto assim que pede ao Batman que capture o Joker com vida, para lhe provar que lei e justiça são mais do que meras abstrações.
Dentro da casa dos espelhos, o Homem-Morcego vai-se esquivando das armadilhas montadas pelo Joker, enquanto este tenta persuadi-lo de que a Humanidade é intrinsecamente insana, sendo portanto inútil lutar por ela.
Quando, por fim, Batman alcança e subjuga o seu velho inimigo, procura chamá-lo à razão, incitando-o a pôr um ponto final à sua carreira criminosa que tanto sofrimento já causou. Embora recuse o apelo do herói, o Joker fica momentaneamente melancólico, deixando escapar, num murmúrio amargurado, que é tarde demais para isso.
Rapidamente recomposto, o Palhaço do Crime conta uma piada sobre dois lunáticos em fuga de um hospício. Enquanto as risadas maníacas do vilão se sobrepõem ao som da chuva que cai copiosamente, Batman não consegue conter-se e faz-lhe coro com  as suas gargalhadas.
Durante breves instantes, os dois inimigos jurados riem-se a bandeiras despregadas como se fossem velhos compinchas. Até que se ouvem ao longe as sirenes da polícia, e ambos ficam subitamente silenciosos enquanto a chuva continua a cair aos seus pés.

Rir é o melhor remédio. Mesmo quando a piada é mortal.

Ramificações:

*Aquando da primeira publicação d'A Piada Mortal, em maio de 1988, Barbara Gordon já abandonara a sua identidade heroica de Batgirl. Aconteceu em Batgirl Special nº1, volume lançado escassos dias antes da chegada às bancas da história de Alan Moore. A despeito dessa circunstância, ela costuma ser citada como a derradeira aparição da heroína. Durante algum tempo circulou mesmo a tese de que, originalmente, A Piada Mortal não teria sido concebida para ser canónica, remetendo para uma realidade alternativa. Barbara Kesel confirmou, no entanto, que foi contratada especificamente para encaixar a trama do volume especial de Batgirl  nos eventos narrados em A Piada Mortal;
*Em consequência da sua paralisia, Barbara Gordon adotaria pouco tempo depois o codinome Oráculo (Oracle, no original) passando a usar tecnologia vanguardista e os seus vastos conhecimentos informáticos para assessorar outros vigilantes. Com especial destaque para as Aves de Rapina, equipa constituída exclusivamente por super-heroínas e sediada em Gotham City de que ela viria a fazer parte;
*No decurso de Zero Hour*, surgiu uma Batgirl proveniente de uma linha temporal divergente. Nessa realidade alternativa, fora o Comissário Gordon e não a sua filha a ser  vitimado pelo Joker;
* Em Booster Gold (volume 2) nº5,  o Gladiador Dourado é enviado ao passado por Rip Hunter investido da missão de tentar impedir o ataque do Joker a Barbara Gordon. Tudo não passou, porém, de um estratagema de Hunter para consciencializar o herói de que, salvo raras exceções, os eventos históricos são imutáveis. Resultando, portanto, infrutíferas quaisquer tentativas de manipulá-los;

Soando como um mau agoiro, no canto inferior esquerdo da edição
 que marcou a despedida da Batgirl podia ler-se:
«As estórias da DC não são apenas para crianças.»
* Christopher Nolan -  o realizador britânico da trilogia cinematográfica The Dark Knight - revelou que A Piada Mortal foi uma das principais influências no desenvolvimento do Joker interpretado pelo malogrado Heath Ledger no segundo capítulo da saga;
* Também Tim Burton (Batman e Batman Returns) assumiu que essa foi a primeira banda desenhada que leu em toda a sua vida e que é ainda hoje a sua preferida. A prová-lo, o facto de a origem do Joker mostrada no primeiro filme por ele dirigido possuir vários pontos de contacto com aquela que é narrada em A Piada Mortal;
* Ainda no campo cinematográfico, no mês passado foi lançada em DVD e Blu Ray, Batman: The Killing Joke. Película de animação que adapta a história homónima, recebeu críticas mistas. Se, por um lado, foi louvada pela fidelidade ao material original, a abordagem feita à Batgirl suscitou reações adversas por parte de muitos fãs. E mais não digo para não ser acusado de spoiler.


Batman visita Barbara no hospital após o ataque do Joker
 no filme de animação baseado em A Piada Mortal.

* Saga já aqui esmiuçada em http://bdmarveldc.blogspot.pt/2016/01/classicos-revisitados-zero-hora-crise.html

Vale a pena ler?

Por conta da sua heterodoxia subversiva, Alan Moore nunca será um escritor consensual. Entre os que endeusam a sua obra e aqueles que a vilipendiam, quedo-me algures a meio do caminho.
Se a fábula desencantada de Watchmen é uma obra-prima da Nona Arte, V for Vendetta não passa de um manifesto anarquista que parece saído diretamente das páginas do clássico 1984, de George Orwell.
Apesar de todas as controvérsias que têm marcado a sua já extensa carreira literária, há que reconhecer a enorme coragem que Alan Moore - provocador nato -  tem evidenciado ao longo dela. A mesma que, seguramente ciente de que apenas escritores corajosos conquistam a imortalidade, voltou a demonstrar através de A Piada Mortal.
Claro que alguns dos que me leem poderão argumentar que esse impacto terá sido, em larga medida, negativo. Ao que eu contraponho com o velho chavão: "Se aquilo que escreves não incomoda ninguém, talvez devas considerar mudar de ofício."
De facto, o que não faltou foi gente incomodada pelo teor violento de uma história que, a despeito de apresentar a origem definitiva do Joker, continua a ser mais conhecida como aquela em que o vilão aleijou a Batgirl. Personagem que, convenhamos, muito antes desse seu infortúnio se tornara  já irrelevante no Universo DC. E que, bem vistas as coisas, saiu beneficiada ao ganhar uma proeminência muito maior como Oráculo. É, pois, caso para dizer que certos males vêm por bem.
Mas não me interpretem mal. Não sou totalmente insensível aos argumentos dos detratores d' A Piada Mortal.
Entendo perfeitamente o agastamento e repulsa perante os laivos de sadismo presentes na traumática sequência em que Barbara Gordon é violentada pelo Joker. Estranhando, porém, a ausência das mesmas reações exacerbadas no que à tortura e humilhação infligidas ao Comissário Gordon diz respeito. Indiferença a que talvez não seja alheia a circunstância de se tratar de uma personagem que corresponde ao protótipo do homem branco e heterossexual, logo conotado com a opressão supostamente exercida sobre determinados segmentos da sociedade (onde se incluem minorias de todo o tipo)  afeitos a crónicos vitimismos. E que cada vez mais dominam o espaço público com o seu aparentemente inesgotável reportório de ofensas e reivindicações. Como ficou, aliás, bem patente na tempestade num copo de água feita a propósito da capa de Rafael Albuquerque. Mero exemplo da histeria e das pulsões censórias que por estes dias coartam a liberdade de expressão e a liberdade artística mesmo em sociedades ditas democráticas. Sintomas de uma funesta pandemia a que, eufemisticamente, se convencionou chamar de "politicamente correto".


O tormento de James Gordon.
Ao ousar desafiar com A Piada Mortal os ditames do politicamente correto, Alan Moore tornou-se um escritor maldito aos olhos de muitos dos acólitos dessa espécie de nova igreja do século XXI. Motivo mais do que suficiente para merecer o meu respeito e admiração, e para me juntar com prazer àqueles que elegem esta como uma das melhores histórias do Batman de todos os tempos.
Se ainda não a leram, tratem de fazê-lo e tirem as vossas próprias conclusões. Em circunstância alguma se deixem sugestionar por avaliações de terceiros (inclusive pela minha). Sobretudo quando esses opinadores falam de cátedra. Ou se limitam a servir de caixa ressonância às lamúrias de espíritos ingénuos que acreditam ser possível esconjurar a violência do mundo real censurando-a na ficção.
Lembrem-se que mais importante do que ter opinião é ter opinião livre e própria. E não pedir desculpa por ela.

Batman e Joker: duas cartas fora do baralho.