03 outubro 2015

CLÁSSICOS DA 9ª ARTE: «MASSACRE DE MUTANTES»




   Nos túneis subterrâneos de Nova Iorque está aberta a caça aos Morlocks. Longe do olhar dos cidadãos comuns e perante a impotência dos heróis, essa comunidade de párias mutantes é o alvo primário de uma matança planificada. Que deixará também cicatrizes profundas nos sobreviventes.

Título original da saga: Mutant Massacre ou Morlock Massacre
Data de publicação: Outubro a dezembro de 1986
Licenciadora: Marvel Comics
Autores: Chris Claremont, Louise Simonson, Jon Bogdanove, Jackson Guice e Walter Simonson
Títulos abrangidos: Uncanny X-Men 210 a 213, X-Factor nº9 a 11, New Mutants nº46, Power Pack nº27 e Thor nº373 a 374
Personagens principais: X-Men, X-Factor, Senhor Sinistro, Morlocks, Carrascos, Thor, Novos Mutantes e Quarteto Futuro (Power Pack)

Capa da compilação de Mutant Massacre editada em 2001.

Edição em Português: No Brasil a saga foi publicada originalmente pela Abril entre maio e agosto de 1991, nos números 31 a 34 da primeira série de X-Men. Em julho de 2013 chegou às bancas uma compilação de Massacre de Mutantes sob os auspícios da Panini Comics.

Reedição da saga com o selo da Panini brasileira.

Desenvolvimento: Quando urdiu a trama ao longo da qual se desenrolaria a matança sistemática dos Morlocks, Chris Claremont (vide perfil já publicado neste blogue) tencionava circunscrevê-la às páginas de Uncanny X-Men. Contudo, Louise Simonson, à época argumentista de X-Factor, tinha um entendimento diferente. Na sua opinião, atendendo à magnitude e ao alcance da saga, seria preferível espraiá-la pelos títulos subsidiários dos X-Men (X-Factor e New Mutants).
  Em virtude dessa alteração de planos editoriais, os dois escritores trocaram entre si rascunhos e sinopses das suas histórias. O objetivo era encontrar pontos de contacto entre elas. Tarefa que se revelou, porém, assaz complicada. Motivando por isso uma extenuante maratona de conferências telefónicas entre os coautores de Massacre de Mutantes.
  Questionada anos mais tarde sobre o balanço que fazia da experiência de coordenar todas as linhas narrativas que formavam a tecitura da saga, Louise Simonson desabafou: "Foi horrível! Nem sei como podemos estar a pensar fazer tudo outra vez!" A escritora referia-se a Fall of the Mutants (Queda dos Mutantes), sequela não assumida de Massacre de Mutantes lançada pela Marvel Comics em 1988. A despeito das dificuldades que essa opção suscitara no passado, o enredo entroncava, uma vez mais, em vários títulos da editora.
  Walter Simonson, responsável pelos segmentos de Thor em Massacre de Mutantes, foi menos lacónico nas suas considerações sobre a saga. Nas palavras do marido de Louise, "a ideia não passava por transformar o enredo numa espécie de colar de contas que o leitor teria de desfiar uma a uma para que a história fizesse sentido". Uma solução desse tipo obrigaria à aquisição de todos os títulos abrangidos pela saga. Esforço financeiro que não estaria decerto ao alcance de todos. A alternativa passou por um modelo narrativo que fazia lembrar uma árvore em que cada um dos seus ramos fornecia ao leitor uma perspetiva geral dos eventos em curso. Claro que teria mesmo de abrir os cordões à bolsa quem quisesse ver a árvore completa.

O casal Walter e Louise Simonson. Partiu dela a ideia de interligar os vários títulos X.

Mapa para a leitura  de  Massacre de Mutantes.


Porque se escondiam os Morlocks no subsolo de Nova Iorque?


Callisto, líder dos Morlocks.

  Incapazes de passarem despercebidos no mundo da superfície devido às suas aparências grotescas, os Morlocks acoitaram-se nos esgotos e túneis subterrâneos da Cidade Que Nunca Dorme. O nome dessa comunidade de párias mutantes foi inspirado nas personagens homónimas de Time Machine, romance escrito por H.G. Wells em 1895.
  Conceito desenvolvido por Chris Claremont e Paul Smith, os Morlocks fizeram a sua primeira aparição em Uncanny X-Men nº169 (maio de 1983). Inicialmente pacífica, ao longo dos anos a comunidade acabaria no entanto por envolver-se em diversos incidentes com a sociedade da superfície.Calisto, Caliban, Masque e Talho (Sander, na versão original) foram os seus fundadores. Tanto este quarteto como os demais Morlocks foram, porém, produtos da bioengenharia executada pelo Fera Negro, a contraparte malévola do Fera proveniente da Era do Apocalipse.

Quem eram os Carrascos?

  Criação conjunta de Chris Claremont e John Romita Jr., os Carrascos (Marauders, em inglês) entraram em cena pela primeira vez em outubro de 1986, nas páginas de Uncanny X-Men nº210, precisamente no âmbito de Massacre de Mutantes. Cronologicamente, a origem da equipa remonta, no entanto, à época vitoriana, quando o Senhor Sinistro ainda respondia pelo nome Nathaniel Essex.

Senhor Sinistro, autor moral da carnificina. 

  Essa versão primitiva dos Carrascos era composta por criminosos comuns contratados por Essex para raptarem indigentes que lhe serviriam depois de cobaias nas suas tenebrosas experiências genéticas.
  Na sua encarnação moderna, o grupo reúne assassinos mutantes a soldo do Senhor Sinistro. Era este o seu elenco durante a saga:

- Maré Selvagem (Riptide): Janos Questad era capaz de girar o seu corpo a supervelocidade e arremessar shurikens em todas as direções, provocando fortes danos nos seus alvos. Foi a primeira baixa da equipa, ao ter o seu pescoço partido por um enfurecido Colossus;
- Dentes-de-Sabre (Sabretooth): Victor Creed, velho conhecido dos X-Men com poderes similares aos de Wolverine (sentidos aguçados, fator de cura acelerado, força ampliada, etc.);
- Arco Voltaico (Arclight): Philipa Sontag possui a habilidade de desencadear ondas de choque que podem assumir a forma de pequenos sismos localizados ou de vagas de água. Serviu nas fileiras do Exército americano durante a Guerra do Vietname, sendo ainda assombrada por essas memórias. Nutria um discreto interesse romântico pelo Caçador de Escalpos;
- Embaralhador (Scrambler):  benjamim do grupo, o sul-coreano Kim Il Sung consegue, através do toque, manipular poderes e sistemas, sejam eles biogenéticos, eletromagnéticos ou tecnomecânicos. É retratado como um psicopata sádico e narcisista, mais preocupado com a sua aparência do que com o sofrimento que inflige às suas vítimas ;
- Maligna (Malice): uma das lugares-tenentes do Senhor Sinistro, tinha o poder de possuir os corpos das suas vítimas, controlando-as a seu bel-prazer. Ao longo de grande parte da saga usou o corpo da  antiga X-Man Polaris como invólucro para a sua forma fantasmagórica. Devido à sua desobediência, seria aparentemente assassinada pelo seu empregador;
- Arrasa-Quarteirão (Blockbuster): Michael Baer era um gigante alemão dotado de força descomunal. Antes de se juntar aos Carrascos, colaborara com organizações terroristas no seu país natal. Apesar do seu nível de poder, foi morto por um único golpe desferido por Thor com o seu Mjolnir;
- Caçador de Escalpos (Scalphunter): John Greycrow, um cruel mercenário que é também o estratega da equipa. Reponde apenas perante Maligna ou reporta diretamente ao Senhor Sinistro. A sua habilidade mutante consiste em reconfigurar qualquer dispositivo tecnológico numa arma. Dispõe igualmente de extraordinárias capacidades regenerativas que lhe retardam o envelhecimento. Foi graças a elas que sobreviveu ao fuzilamento de que foi alvo em 1944, depois de ter chacinado e escalpado oito companheiros de armas;
- Vertigo: detém a habilidade de induzir psionicamente vertigens nos seus oponentes, deixando-os desorientados ou derrubando-os;
- Prisma (Prism): assassino altivo e frio que subestima frequentemente a fragilidade do seu corpo cristalino, o qual pode defletir a maior parte dos ataques energéticos mas não resiste a impactos físicos;
- Arpão (Harpoon): Kodiak Noatak, um jovem índio que pode carregar objetos(geralmente a arma de arremesso de onde retira o seu codinome) com bioenergia. Os efeitos causados nos seus alvos podem ir desde o simples atordoamento à eletrocussão.

Os Carrascos (pela ordem acima apresentada).


Qual a relação entre os X-Men e o X-Factor?




  Nos seus primórdios, o X-Factor (grupo idealizado por Bob Layton e Jackson Guice) agrupava o quinteto fundador dos X-Men:

- Homem de Gelo (Iceman): o irreverente Bobby Drake foi agraciado com habilidades criocinéticas que lhe permitem manipular o gelo e a neve congelando a humidade presente no meio ambiente;
- Garota Marvel (Marvel Girl): poderosa telepata dotada de telecinesia, a ressuscitada Jean Grey mantinha há muito uma relação amorosa com Ciclope;
- Ciclope (Cyclops): líder do grupo, Scott Summers nasceu com a capacidade de emitir potentes rajadas óticas;
- Fera (Beast): uma das mais prodigiosas mentes científicas do planeta, Hank McCoy possui força, agilidade e velocidade sobre-humanas. Depois de largos anos com uma aparência animalesca, Hank recuperou o seu aspeto humano;
- Anjo (Angel): herdeiro de uma das maiores fortunas dos EUA, Warren Worthington III consegue voar graças ao enorme par de asas brancas com que nasceu.
O batismo de fogo da equipa em X-Factor nº1 (fevereiro de 1986).

Enredo: Em Los Angeles, a jovem mutante chamada Tommy e o seu namorado do Clube do Inferno, Richard Salmons, são atacados pelos misteriosos Carrascos. Tommy era uma ex-Morlock que  fugira dos túneis subterrâneos nova-iorquinos na sequência da morte de alguns amigos seus às mãos de membros dessa bizarra comunidade. Resgatada por Salmons e acolhida pelo Clube do Inferno, Tommy mudou-se pouco tempo depois para a Costa Oeste
  Ameaçando matar Salmons, os Carrascos obtêm de Tommy a localização exata dos Morlocks no subsolo da Cidade Que Nunca Dorme. Na posse dessa informação, o grupo empreende uma brutal e metódica carnificina que vitima centenas de Morlocks antes da chegada separada de X-Men e X-Factor.
  Essa descoordenação das duas equipas de heróis mutantes resulta em pesadas baixas nas fileiras de ambas. Entre os X-Men, Colossus, Lince Negra e Noturno são feridos com gravidade. Do lado do X-Factor, Anjo é crucificado e deixado para morrer. Também eles encurralados pelos Carrascos, os restantes membros da equipa escapam a destino idêntico (ou pior) graças à intervenção de Thor e do Quarteto Futuro.

Anjo martirizado.

  Chegados entretanto ao palco do massacre, os Novos Mutantes são destacados pelos X-Men para uma missão de busca e  resgate de eventuais sobreviventes. Acabam, no entanto, a lutar pela própria sobrevivência no gigantesco labirinto subterrâneo.
   A fim de limpar os túneis juncados de cadáveres em putrefação, o Deus do Trovão usa o seu poder para gerar uma tempestade de fogo. Ao testemunharem o fenómeno, os X-Men assumem que o dito seria obra dos Carrascos e os que os Novos Mutantes haviam perecido nele.
  Enquanto isso, Dentes-de-Sabre e Wolverine digladiam-se violentamente, com o primeiro a seguir o segundo até à Mansão X. Agindo furtivamente, o vilão consegue destruir Cérebro, o supercomputador programado pelo Professor Xavier para detetar homo superiores. É, no entanto, impedido de retomar a caça aos Morlocks quando tem a sua mente invadida por Psylocke.

O sangrento duelo de Wolverine e Dentes-de-Sabre.
  Acuado pela chegada dos restantes X-Men à Mansão, Dentes-de-Sabre corre para uma falésia próxima, lançando-se de seguida ao mar, numa desesperada tentativa de fuga. Perseguido por Wolverine nas encrespadas águas do oceano, o vilão tem a sua mente sondada por Psylocke antes de conseguir escapulir-se. É assim que os X-Men ficam a saber quem esteve por detrás de tudo: ninguém menos do que o Senhor Sinistro.
 Vinte anos antes, o Fera Negro chegara ao nosso mundo e usara a tecnologia do Senhor Sinistro para criar os Morlocks. Ao tomar conhecimento disso, Sinistro não descansou enquanto não eliminou esse material genético não autorizado. Tendo sido, portanto, esse o seu aterrador móbil para ordenar o massacre.
  Mais aterradora é, porém, a descoberta de que um X-Man -  Gambit - fora responsável pelo recrutamento dos Carrascos.

Gambit, um mutante de passado nebuloso.

Consequências: 

* Pregado à parede por Arpão e Arrasa-Quarteirão, Anjo sofreu ferimentos gravíssimos nas suas asas,que lhe foram posteriormente amputadas devido à gangrena que nelas alastrava. Tempos depois, o herói ganharia um par de asas tecno-orgânicas, cortesia de Apocalipse que dessa forma iniciava a sua transformação num dos seus quatro cavaleiros. Desse momento em diante, Anjo daria lugar ao Arcanjo;
* Presa na sua forma imaterial enquanto salvava Vampira de Arpão, Lince Negra sofreu uma deterioração a nível molecular que colocou em risco a sua vida. Seria salva in extremis graças aos esforços combinados de Reed Richards e do Doutor Destino;
* Ferido pelos shurikens de Maré Selvagem, Colossus ficou temporariamente tetraplégico após Magneto usar os seus poderes para reparar os danos causados na couraça metálica do herói;
* Já bastante maltratado na sequência do seu duelo com Nimrod, Noturno foi deixado em coma depois de defrontar Maré Selvagem;
* Wolverine descobriu que Jean Grey estava viva após farejar o seu odor nos túneis mas decidiu não partilhar essa informação com os restantes X-Men;
* Quando estava prestes a ser executada a sangue-frio por Arpão, a Morlock Praga foi salva por Apocalipse que a escolhera para ser o seu cavaleiro da Pestilência;
* Outro Morlock, Masque, assumiu a liderança dos sobreviventes da comunidade, depois de reinstalada nos túneis subterrâneos de Nova Iorque na esteira dos eventos ocorridos em Inferno (saga já aqui revisitada). Usaria no entanto a sua habilidade mutante de manipular a derme para desfigurar todos os seus pares. Circunstância que resultou num ensandecimento coletivo;
* Gambit foi temporariamente banido dos X-Men após a revelação de que fora ele quem recrutara os Carrascos.

De cabeça perdida, Colossus tira a vida a Maré Selvagem.

Vale a pena ler?

  Embora sem o virtuosismo de outras sagas dos X-Men escritas por Chris Claremont, Massacre de Mutantes merece, sobretudo pelas suas implicações futuras, um lugar de destaque na memorabilia do grupo. A meio caminho entre o épico dramatismo da Saga da Fénix Negra (1980) e o dantesco surrealismo de Inferno (1989), Massacre de Mutantes consegue, ainda assim, ser impactante. Residindo a sua maior força, ironicamente, no fracasso dos heróis em salvarem as vítimas da matança sistemática ordenada pelo Senhor Sinistro.
 Dentre os vários elementos macabros que pautam o enredo, este é, inquestionavelmente, o mais perturbador. Em última análise, não há como negar a evidência de que, contrariando os preceitos morais subjacentes a narrativas deste jaez, os heróis saem derrotados. Não só porque se revelam incapazes de impedir a carnificina em curso, mas também em virtude das pesadas baixas que lhes são infligidas pelos seus oponentes.
   Na memória dos leitores ficará para sempre gravada a crucificação de Anjo nos esgotos nova-iorquinos. Pungente metáfora para a intrínseca maldade humana que leva a nossa espécie a martirizar símbolos de bondade e esperança.
  Outra lança espetada no flanco dos heróis foi a traição de um dos seus. Qual Judas mutante, Gambit tem expostos os seus pecados pretéritos sendo, por isso, sentenciado ao ostracismo. Colossus, por sua vez, mancha as mãos de sangue ao matar Maré Selvagem. As profundas cicatrizes deixadas pelo conflito com os Carrascos são, pois, tanto físicas como emocionais.
 Ao optar por um registo mais sombrio e violento do que o habitual, Claremont assumiu-se como precursor de uma tendência que nos anos 90 prevaleceria nos comics. Época em que prosperou o conceito do anti-herói dotado de moral enviesada e adepto de métodos brutais.
 Depois de Massacre dos Mutantes os leitores deixaram de dar por garantidos os finais felizes nas histórias dos X-Men. Intuindo ao mesmo tempo que algo de mais sinistro ganhava forma no horizonte.
 Desaconselhável para leitores sensíveis, esta é uma daquelas sagas que deleitará os que apreciam a atmosfera lúgubre que caracteriza atualmente as aventuras (e desventuras) dos super-heróis nos quadradinhos (e, sobretudo, fora deles).